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Pessoas com Deficiência encontram protagonismo em Pequenos Negócios

*Por Vagner Ferreira

É comum se deparar com a frase ‘O trabalho Dignifica o Homem’, muitas vezes atribuída a Max Weber, em referência à sociologia Weberiana. No entanto, trazendo para o contexto mercadológico atual, com a ausência de políticas inclusivas eficazes, essa dignidade que o trabalho pode proporcionar, enfrenta ainda muitos desafios quando se trata de oportunidades para pessoas com deficiências.

Segundo informações da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD): Pessoas com Deficiência 2022, divulgada pela Secretaria Nacional dos Direitos da Pessoa com Deficiência do Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania (SNDPD/MDHC) e pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), as Pessoas com Deficiência estão menos inseridas no mercado de trabalho. Apenas 26,6% dessas pessoas conseguiram oportunidades, e cerca de 55% trabalham em situação de informalidade. O rendimento médio também é menor e foi de R$1.860, enquanto para pessoas sem deficiência chegou a R$2.690, calculando uma diferença de 30% entre ambos.

Com isso, a criação de pequenos negócios acabam se tornando uma das principais possibilidades de fomento à renda. Essa foi a solução encontrada pela maquiadora Maili Santos (39), mãe do Antônio Mateus, de 16 anos, e a Maria Antônia, de 14 anos, e que possui Paraparesia Não Traumática desde 1 ano e nove meses de idade, utilizando assim, a cadeira de rodas para se locomover.

Ela é responsável pelo Stúdio Móvel – ‘móvel’ em alusão a cadeira de rodas -, que consiste em sair de sua casa, na Baixa de Quintas, na comunidade do Beco do Cirilo, e percorrer as ruas de Salvador, levando para a cliente (à domicílio) serviços de maquiagem e autoestima. Todavia, ainda mais quando se trata de comunidades, no geral, Salvador não é uma cidade acessível e a maquiadora enfrenta desafios com a acessibilidade diariamente, seja no trajeto, seja em sua casa ou na casa da cliente.

“Eu conto com parceiros que já conhecem da minha rotina, que tenham carros, que tenham espaço para a cadeira de rodas, que não se incomode com isso, pois, os motoristas de aplicativos, muitas vezes, infelizmente, me abandona na porta, recusa a corrida quando ver a cadeira e isso acaba me atrasando. Com esses atrasos, já me arrumo com duas a três horas de antecedência. E conto também com a sensibilidade da cliente, por saber que a maquiadora se trata de uma pessoa com deficiência. Então, assim, é uma luta no antes, no durante e no depois”, descreve Maili, sobre o seu desafio diário.

“Mas há também das mais inconvenientes situações, como contratos que são cancelados próximo aos horários ou aos dias do serviço por saberem que eu que vou atender, pessoas que só querem pagar o meu transporte, que pedem permuta, que não querem pagar achando que estão me fazendo um favor por me colocar naqueles espaços ou que pedem para eu fazer um trabalho social. Só por que eu sou uma pessoa com deficiência que querem diminuir o meu valor?” Questiona ela, indignada.

A sua relação com esse ofício surgiu após uma sequência de fatores pessoais, como o nascimento do filho, o fim do relacionamento e o enfrentamento à depressão. Maili encontrou na maquiagem uma válvula de escape e hoje em dia, ela compartilha a rotina com o companheiro, Edilton Lopes, que o conheceu há 15 anos. Edilton notou o potencial de Maili logo no início da carreira e decidiu largar o emprego de CLT com Serviços Gerais para incentivar a oportunidade na carreira dela.

“No início dela como maquiadora, uma instituição recusou tê-la como aluna, porque não era acessível. Isso foi logo no começo da missão, e ela ficou muito mal. As pessoas falavam muitas coisas negativas, de que seria muito difícil, de que nunca viram uma maquiadora sentada, tinham preconceitos, e ela ficava muito triste, se sentia incapaz e achava que o erro estava nela e não nas pessoas”, lembra ele, que tem se especializado em fotografia para produzir conteúdos de making off para o Stúdio Móvel.

Stúdio Móvel
O Stúdio Móvel é incluído nos dados divulgados pelo Sebrae em 2024, o qual destaca que os pequenos negócios abrangem 95% dos empreendimentos formais no país, contribuindo com 30% do PIB e afetando direta ou indiretamente 47% da população brasileira. O registro formal, no caso, foi feito no nome do Edilton, uma pessoa sem deficiência, por escolha dos dois, devido a maior facilidade no deslocamento para conseguir tratar de questões burocráticas.

Para Maili, ter um pequeno negócio não era apenas a solução, mas era a sua principal e primeira alternativa. Ela, que já teve experiência em ambientes corporativos – e muitos desses lugares não estão preparados para acolher a pessoa com deficiência, devido a estrutura e logística -, criou o Stúdio Móvel para ter autonomia, protagonismo em sua trajetória profissional e impacto na comunidade local.

Ela reflete: “Já é um impacto ao contratarem uma profissional e perceber que ela possui algum tipo de deficiência. Quando as pessoas pensam em um negócio, não pensam na população em geral, pensam nas pessoas que andam, que caminham, então não se preocupam em adequar as coisas para a gente, como uma rampa, por exemplo. Veem a pessoa com deficiência no local de dependência, mas somos muito independentes. Nós pagamos impostos, compramos equipamentos, medicações, passamos perfumes, mas querem que a gente viva ali de doações e do coitadismo”.

Libidinosa e Lojinha Ks
Não faltam variedades e nem criatividade no ramo do microempreendedorismo. Psicóloga, mas que não se adequou a área devido a diversos fatores, Kerollay Silva (31), que possui Amiotrofia Espinhal Progressiva Escoliose Importante tipo III e tornou-se ‘cadeirante’ – termo que ela prefere se referir -, aos 12 anos de idade, se arriscou aos pequenos negócios para ter a sua principal fonte de renda:

Ela é dona de um sex shop virtual, o Libidinosa, que vem na contramão dos estigmas sociais e garante desmitificar a ideia de que pessoas com deficiência não entendem ou não dominam quando o assunto é sexo / sexualidade. A identidade visual da lojinha já explana a polêmica ao ter uma pessoa sem deficiência como um anjinho e a pessoa em uma cadeira de rodas como uma diabinha. Sobre a ideia, a vendedora lembra: “Eu estava conversando com uma amiga virtual que mora em outro estado e que também tem Amiotrofia Progressiva, só que do tipo I, e eu falava com ela que estava sem grana. Aí ela falou, ‘Miga, porque você não vende produtos de sex shop?’, então eu pensei: ‘Duas coisas que movimentam o mundo: dinheiro e sexo. Por que não vender? Daí passei a vender produtos eróticos”.

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Kerollay vendendo os produtos da libidinosa e da Lojinha Ks em uma feira do empreendedorismo – Foto: Divulgação: Arquivo Pessoal

Entretanto, quebrar barreiras não é uma tarefa nada confortável. “O primeiro enfrentamento dentro deste recorte é o machismo. Os homens começaram a encher o meu saco, vinham com assédios, começavam a perguntar quanto era o programa, se eu também me vendia. E aí eu venho conseguindo quebrar essas barreiras, claro, sem desmerecer o trabalho de quem faz programa, mas mostrando que quem vende produtos eróticos, não está à venda. Inclusive, quando eu ia entregar os produtos a eles, eu vestia até uma roupa mais social, mais posturadinha, sem aparecer muito o decote para evitar quaisquer tipos de estresse”, reforça ela, sobre a luta em ser uma vendedora atípica de sex shop.

“Já as mulheres têm mais inibição em comprar qualquer tipo de produto, seja vibrador, excitantes ou qualquer outra coisa. E elas sempre conversam comigo, pedem sugestões, vem com indicações. Aí eu vou e explico a elas. Pergunto: ‘Você já se tocou? Você já se conhece? Esse ‘vibramor’ sai com muita frequência”, explica Kerollay, sobre a diferença na relação comercial entre homens e mulheres.

Geralmente o contato se inicia no meio digital, um espaço que tem democratizado o acesso ao empreendedorismo e facilitado as oportunidades de negócios. Kerollay compartilha que é comum ela aparecer apenas nos stories, e assim, a maioria das pessoas nem percebe que ela utiliza uma cadeira de rodas. Todavia, é durante as entregas que o impacto dessa realidade se torna evidente para os clientes.

Além de divulgação e entrega, ela faz desde as compras, às pesquisas de mercado, até atendimento aos clientes. Sua cadeira é motorizada e graças a isso, ela consegue realizar as entregas sozinha, o que antes julgava impossível, e por isso, considerava necessário sempre esstar na companhia de alguém.

Não só a Libidinosa, Kerollay também tem a ‘Lojinha KS’ que oferece produtos que vão desde itens de beleza, até brincos, utensílios domésticos, perfumes e maquiagens, com envio para todo o país.

Ainda, em algumas ocasiões, ela trabalha como ambulante em pontos estratégicos da cidade, vendendo Brigadeiros Gourmets para aumentar o seu ganho. “Eu sou capricorniana, então, para mim, todo o trabalho é sempre muito bem-vindo”, brinca ela, sobre sua versatilidade. “Não quer esse brigadeiro? Tenho outros docinhos que você possa gostar. Ah, e esse brinco que estou usando é também de minha lojinha”, aproveita ela, para divulgar os seus trabalhos e adquirir novos clientes.

Contexto Histórico
Encontrar pessoas com deficiência no mercado de trabalho ainda é uma tarefa difícil. Contudo, os preconceitos – conhecido como capacitismo -, sempre foram constantes. Antes, essas pessoas eram ainda mais excluídas, com poucas ou nenhuma oportunidade de participação no ambiente profissional.

O historiador Iure Alcântara recorda: “Antes da 2ª Guerra Mundial, as pessoas com deficiência física eram vistas apenas pela sua doença, e eram associadas, na maioria das vezes, pela igreja e pelo estado, como inadequadas. Após a 2ª Guerra mundial, que resultou em milhares de mortos ou que deixou muita gente com algum tipo de deficiência, houve uma alta demanda por mão de obra no mercado de trabalho, e assim, essas pessoas passaram a ocupar também esses espaços”.

Ele prossegue: “Há também outro fator importante: com o fim da guerra, surge a criação da Organização das Nações Unidas (ONU) e a discussão sobre direitos humanos, que tira do caráter religioso a visão que tinham sobre pessoas com deficiência e pautam importantes perspectivas de inclusão”. Nesta época, entretanto, a inclusão PCD era considerada uma questão individual e patológica, conforme a estrutura do modelo biomédico da deficiência. O modelo consistia nos indivíduos com deficiência em se adequar ao ambiente e à sociedade, mantendo assim, a segregação.

No Brasil, os direitos fundamentais das pessoas com deficiência foram reconhecidos na segunda metade do século XX, com a elaboração da Constituição Federal de 1988, que garantiu sua plena cidadania. O processo de inclusão ganhou destaque em 1991 com a promulgação da Lei de Cotas.

Leis e benefícios
A Lei de Cotas (8.213/91) determina que empresas com 100 ou mais funcionários reservem vagas para pessoas com deficiência, variando de 2% a 5% conforme o tamanho da empresa. Multas de até R$228 mil são aplicáveis em caso de descumprimento, e a lei também abrange pessoas reabilitadas pelo INSS. “As cotas são uma conquista muito grande, é uma reparação histórica e faz com que as pessoas com deficiência sejam incluídas no processo político, social, econômico e educacional. Mas cotas sozinhas não são suficientes, porque visibilidade não é poder”, descreve o historiador, Iure.

Quem também reconhece a importância, mas faz duras críticas ao sistema de cotas é o filósofo Marcelo Zig, 50: “Muitas empresas hoje só contratam pessoas com deficiência para poder não sofrer nenhuma penalidade quanto a fiscalização do cumprimento da lei, e não porque entende a diversidade além de uma responsabilidade social, a diversidade como uma estratégia de negócio, pois se contratam uma pessoa com deficiência, essa pessoa, se puder, vai desenvolver suas competências e habilidades para pensar soluções que vão alcançar os clientes com deficiência”, avalia ele.

Zig também é uma pessoa com deficiência com mobilidade reduzida. Ele possui Tetraplegia Incompleta em razão de um acidente sofrido aos 21 anos de idade, ao pular de uma ponte nas águas rasas de um rio e lesionar a medula na altura da cervical. Com isso, passou a ter a cadeira de rodas como sua aliada na vida e nos negócios. Atualmente, trabalha em estilo CLT na Inklua, uma plataforma / empresa voltada para o recrutamento e a seleção da pessoa com deficiência, mas também é MEI e, assim como em toda a trajetória, já se propôs a alguns diferentes investimentos:

Ele montou com dois amigos uma sociedade onde criavam peças de xadrez personalizadas e originais, a exemplo de peças espelhadas; Abriu uma Calzoneria em uma praça do bairro de Piatã; Lançou uma banda junto com os irmãos; Produziu eventos independentes para artistas que não tinha oportunidades de se apresentarem em outros locais; Criou o Afrodef e a Cadeira de Som, em que transforma a cadeira em um sistema de som e percorre as ruas de Salvador e eventos sociais; Idealizou a Parada do Orgulho da Pessoa com Deficiência e pretende lançar em breve uma lojinha para vender artigos e produtos nas cidades em que percorrer com a manifestação.

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Marcelo Zig também é uma pessoa com deficiência que utiliza da cadeira de rodas para se locomover e já se arriscou em diferentes tipos de negócios – Foto: Arquivo pessoal

Tais empreendimentos foram realizados mesmo com ele contando com o Benefício de Prestação Continuada (BPC) previsto na Lei Orgânica da Assistência Social nº 8.742. O benefício assegura um salário mínimo mensal para pessoas com deficiência de qualquer idade que enfrentam quaisquer tipos de limitações. Para isso, é necessário os documentos e os relatórios de comprovação, além de garantir que a renda per capita familiar é menor que do salário mínimo.

“Geralmente, os profissionais com deficiência são contratados por cargos em que eles vão receber o mesmo valor que recebem no BPC, que é um salário mínimo. Então acaba que, dessa forma, esse profissional opta por receber o BPC, que não vai fazer com que ele faça um deslocamento, vá enfrentar barreiras na cidade, passe o dia fora do seu domicílio e tenha que cumprir uma carga horária, pois nesse tempo, ele pode estar realizando um outro empreendimento, onde ele possa complementar a renda dele e do grupo familiar”, relata Zig, lembrando que antes, caso a pessoa com deficiência optasse por trabalhar CLT, tinha o benefício cortado em 100%.

No mais, sobre a inclusão no mercado de trabalho, Zig provoca: “Quando a gente ouve ou se relaciona com a frase ‘O Trabalho Dignifica o Homem’, a gente precisa fazer uma leitura para compreender de que ‘homem’ que está se referindo. Quando a gente pensa na perspectiva do homem com deficiência, a gente compreende que ele não está inserido neste contexto. E dessa forma, não só o homem com deficiência, mas a pessoa com deficiência no geral. A solução é de que precisa-se assumir o lema da pessoa com deficiência como um método de confrontamento ao capacitismo, o ‘nada sobre nós sem nós’, ou seja, é preciso que as pessoas com deficiência estejam presentes, tenham oportunidades de participar de espaços e das relações sociais, para através da convivência, ir desmistificando os preconceitos e as barreiras que afasta as pessoas sem deficiência das pessoas com deficiência”.

Vagner Ferreira

*Vagner Ferreira,
Sou jornalista graduado pela Faculdade Unime/Anhanguera, com experiência na comunicação da TV Aratu, Grupo A TARDE, TV Bahia, Câmara Municipal, SECIS, TRE, e agora, no Informe Baiano; O que me motiva é conhecer e contar diferentes tipos de histórias.

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